Uma vítima de abuso sexual dentro da comunidade Testemunhas de Jeová, que prefere se manter anônima, relatou ter sido ignorada pela congregação ao não apresentar testemunhas que confirmassem o crime. Na época, ela tinha apenas 10 anos. A organização, que afirma abominar o abuso de menores, na prática, segue diretrizes que dificultam a punição dos culpados.
A revista “A Sentinela – Anunciando o Reino de Jeová”, um manual para os anciãos da congregação, exige no mínimo duas testemunhas para iniciar uma audiência contra um acusado de abuso sexual. “Essa regra discrimina mulheres e meninas e permite que o agressor continue impune”, critica Celeste Leite dos Santos, Promotora de Justiça e Presidente do Instituto Pró-Vítima. Segundo ela, como esses crimes ocorrem na clandestinidade, raramente há testemunhas.
A Promotora também observa que, além de não proteger a vítima, a igreja muitas vezes revitimiza e pune quem denuncia, chegando a expulsá-las da comunidade. “Fui tratada como tola por deixar acontecer algo que sabiam ser errado. Os membros da congregação que abusaram de mim não receberam nenhuma punição, e acredito que isso ainda ocorre”, diz Mirela Costa, vítima de abusos dentro da igreja.
Baseando-se em interpretações bíblicas, o manual da igreja justifica a necessidade de múltiplas testemunhas para manter um “alto padrão de justiça”. Uma edição da revista “A Sentinela” de 2019 reforça essa exigência, enquanto uma publicação de 1995 sugere que vítimas recuperem “recordações reprimidas” antes de formalizar uma acusação.
“Quem abusa sexualmente de uma criança é um estuprador e deve ser tratado como tal. A vítima tem direito de denunciar, mas a igreja aconselha a esperar até recobrar estabilidade emocional”, diz a edição de 1995. Ainda segundo a igreja, um abusador arrependido pode ser perdoado e continuar na congregação, conforme orienta uma carta de outubro de 1995.
Mirela Costa destaca que a estrutura hierárquica da igreja favorece os homens, que têm cargos de chefia e são respeitados acima de tudo. “Uma mulher que se opõe a um homem é vista como arrogante e disciplinada”, afirma ela.
A política da igreja é que, se o acusado negar o abuso e não houver testemunhas suficientes, ele será considerado inocente. Mesmo assim, a publicação de 1995 sugere que os culpados não escaparão do julgamento divino.
Essa política interna contrasta com a legislação penal brasileira, que desde a Lei 12.015 de 2009, trata crimes sexuais contra crianças com severidade. O Código Penal estipula penas rigorosas para o estupro de vulneráveis, com reclusão de 8 a 15 anos, podendo aumentar em casos de lesão corporal grave ou morte.