Prestes a embarcar para Xangai, ao fim do recesso de 2019, a zagueira Camila Martins retirou a mala da balança. Tinha contrato com o Shanghai Shenhua, da China, mas o medo do novo coronavírus, que fez 259 vítimas fatais no país ainda em janeiro, foi maior. Ela desistiu. Dois meses depois, para ajudar a mãe, empregada do lar, e os sete irmãos a terem uma casa própria no Recife, capital de Pernambuco, Camila decidiu voltar.
Quando desembarcou no último dia 27 de março, após dois dias de viagem, a atleta esperava encontrar uma Xangai voltando à normalidade, devido à queda no número de novas contaminações pela Covid-19 na China. Mas o que ela viveu, foi o oposto. Horas de espera no aeroporto, exames do governo local e, agora, mais duas semanas de quarentena nas estruturas do clube.
“Passa um filme na cabeça. Dá vontade de largar tudo. Pensei que, para estar passando por essa situação, era melhor estar no Brasil. É difícil porque estou sozinha. Então, quis desistir. Não queria aceitar. Foi um transtorno que nunca passei na minha vida. Se eu soubesse que estava assim, esse processo todo, juro que não tinha vindo. Chorei muito.”
Até a última quarta-feira, a China tinha 3.312 mortos pela Covid-19. Quando pousou, o espaço estreito entre as cadeiras do avião foi tudo o que a atleta teve por quase três horas. Vestindo máscaras e um traje descartável, funcionários retiravam aos poucos os passageiros que ali chegavam.
Por entre os olhares desconfiados, de quem vive cenas inimagináveis, em meio a uma pandemia, Camila tinha um calhamaço de formulários nas mãos. Estava se cuidando? Onde esteve nos últimos meses? Teve contato com contaminados? Eram perguntas que a atleta tentava responder, porque, como se não bastasse, ela não fala o idioma local.
“Entrei em desespero. Como que eu ia falar com alguém para pedir um telefone para falar com minha tradutora? Esbarrei com uma brasileira e pedi para ela me ajudar para preencher os papéis. Se fosse no Brasil, resolvia porque é na minha língua. Mas numa que você não conhece?”
Quando, enfim, deixou o avião, a pernambucana esperou por mais seis horas até ser atendida. Submetida a um novo questionário, ela cruzou o aeroporto em direção a um carro de sete lugares, de maior distância entre passageiro e motorista. A equipe no veículo a deixaria em um quarto, reservado pelo governo para isolar pessoas que venham de outros países, por mais dez horas para passar pelo teste da Covid-19.
Sentada em um dos bancos de couro na parte de trás, sozinha, ela observava por entre os vidros da janela, pela primeira vez, as ruas de Xangai vazias. Cenário inimaginável para uma cidade que tem mais de 24 milhões de habitantes. A pouco mais de 800km de Wuhan, epicentro do novo coronavírus, o núcleo financeiro da China está distante do movimento usual.
“Saí do aeroporto direto para esse quarto. Me deram algo para comer, aí enfiaram dois pauzinhos no meu nariz, acho que para tirar secreção, e foram embora. Depois, eles voltam com o resultado, para eu entregar no clube e fazer a quarentena. É uma sensação que, como nunca passamos, fico com uma aflição. É medo, angústia.”
Camila passou a madrugada na estrutura cedida pelo governo. Tinha uma cama, ar condicionado e cadeiras. Mesmo com o resultado negativo, no último sábado, a zagueira entrou de quarentena nas estruturas do clube, agora também com televisão e itens para exercícios. É o protocolo obrigatório aos estrangeiros que chegam ao país. Sem contato com outras pessoas, ela escolhe os alimentos por meio de chamada de vídeo com a tradutora, e um funcionário equipado quem faz a entrega.
“Não tenho contato com ninguém e nem sei quem é que coloca. Sei que é um homem. Mas ele põe em cima de uma mesa lá fora, eu abro a porta, pego a comida e fecho de novo. Só dizem: chegou seu café, chegou seu almoço, chegou sua janta.”
A vida de Camila Martins ganhará tons de normalidade somente a partir do dia 12 de abril, quando poderá deixar o isolamento. Até lá, a zagueira, que se destacou na Libertadores de 2018 pelo Santos e chegou a ser convocada para treinos com a seleção brasileira (em 2017), encontra forças em algo determinante: a família.
– Penso de onde vim e onde estou. Com toda a dificuldade, sei que posso dar o melhor para minha família estando aqui. Porque antes queria dar algo melhor, mas não podia. É o que me dá mais força, porque no Brasil nunca vou conseguir isso. Meu sonho ainda não foi concretizado, que é tirar minha mãe do trabalho. Meus irmãos moram todos em casa alugada. Penso em comprar algo para eles, nem que seja pequeno, mas que seja deles. Se eles estiverem bem, eu também estou.