Aos traços sisudos das carrancas, quase a face da própria fúria, atribuem-se na cultura popular o poder de espantar os maus espíritos. Pois é exatamente à escultura que os defensores do São Francisco apelam para salvar o veio de águas que corta 8% do território nacional e banha uma área que abriga população de 18 milhões de pessoas, em mais de 500 municípios.
O apelo à figura da carranca acontece em um contexto em que só mesmo poderes tidos como míticos podem reverter o quadro de degradação em que se encontra o Rio da Integridade Nacional. Segundo um levantamento do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF), a recuperação total do Velho Chico em toda a sua extensão demandaria R$ 31 bilhões em investimentos, públicos e privados, até 2025.
“Todo o curso do rio é bastante degradado e não estamos falando apenas do leito principal, mas também dos seus afluentes. Além da preocupação com o São Francisco, precisamos pensar também nos outros rios, que levam água até ele”, explicou o vice-presidente do CBHSF, José Maciel Nunes de Oliveira.
Por outro lado, o volume de recursos previstos em investimentos do CBHSF, no Plano de Recursos Hídricos 2016/2025, é de R$ 532, milhões. Não precisa ser nenhum gênio da matemática para entender a necessidade de um milagre. Talvez daí tenha surgido a ideia de apelar para uma campanha de conscientização baseada na carranca.
No próximo dia 3 de junho, quando se comemora o Dia Mundial do Meio Ambiente, o comitê realizará uma série de ações em prol do rio, através da campanha Sou Mais Velho Chico: #Virecarranca. O movimento, apresentado a jornalistas no último dia 17 de maio, em Brasília, é uma tentativa de conscientizar a população quanto à necessidade de preservar o São Francisco.
O comitê lembrou das 235 barragens de rejeito de minério localizadas ao longo da bacia que possuem alto risco de rompimento, o que representa “um risco sem precedentes” para a vida do rio.
Vazão mínima
Até o ano de 2013, a vazão mínima com que o Velho Chico chegava ao mar, após percorrer cinco estados brasileiros – Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas – era de 1,3 mil metros cúbicos por segundo (m³/s). Entretanto, após sucessivos períodos de escassez hidrológica, foram estabelecidos novos padrões mínimos de vazão nas duas principais barragens, em Três Marias (MG) e Sobradinho (BA).
“De 2013, o mínimo foi diminuindo até chegar aos 550 m³/s. Agora, será possível uma elevação para 800 m³/s, mas não temos ideia de quando esse patamar irá retornar aos 1,3 mil m³/s de antes”, explica Maciel. Os dados apresentados pelo comitê apontam que os reservatórios de Três Marias e de Sobradinho estão com capacidade de 80% e 50% de suas capacidades, atualmente.
“O baixo nível de vazão não acontece por uma vontade nossa, até porque isso é ruim até para a captação da água do rio. Acontece porque não há possibilidade de se tirar um volume maior”, diz o presidente do CBHSF, Nivaldo Miranda.
Ele lembra que o volume crítico do rio chegou a patamares muito baixos no passado. “Mesmo com o aumento da vazão, ainda não estamos em um patamar ideal, mas isso já ajuda a melhorar questões como o assoreamento, captação de água e mesmo a navegação, que é muito importante”, avalia.
Entre os anos de 2012 e 2019, o comitê investiu R$ 42 milhões em ações que beneficiaram mais de 60 municípios com planos na área de saneamento.
Outros 40 deverão ser contemplados numa leva nova do projeto ainda este ano, mas os números estão longe de atender a demanda. Embora não disponham de números exatos, os membros do comitê acreditam que a maior parte dos municípios banhados pelo Velho Chico tem deficiências na área.
“Os planos de saneamento são muito importantes para a preservação do rio, mas também para que os municípios possam ter acesso a uma série de convênios públicos”, explica Miranda.
Um exemplo do tamanho da demanda pode ser verificado na região do Médio São Francisco, na Bahia, onde 23 municípios disputam 10 vagas disponíveis.