Em fevereiro de 2024, uma chuva sem precedentes devastou comunidades rurais de Paulo Afonso, na Bahia. Um ano depois, dezenas de famílias dos povoados de Bogó, Barriga e Sítio do Lúcio continuam vivendo entre escombros e promessas. O drama dessas pessoas, que viram suas casas serem destruídas em questão de horas, ganhou novos capítulos com denúncias de irregularidades na gestão dos recursos destinados à reconstrução.
Tempestade histórica e destruição sem precedentes
A tragédia começou na noite de 17 de fevereiro de 2024, quando uma chuva torrencial atingiu a região rural de Paulo Afonso. Em apenas 4 horas, foram registrados 330 mm de precipitação – mais da metade de toda a chuva registrada no município durante todo o ano anterior, conforme dados da Defesa Civil municipal.
O volume de água superou em seis vezes o esperado para o período, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), que havia previsto entre 20 e 30 milímetros por hora ou no máximo 50 mm por dia para aquele mês.
As consequências foram devastadoras: casas rachadas ou completamente destruídas, famílias desabrigadas, estradas danificadas e interrupção no fornecimento de energia elétrica. As comunidades de Bogó, Barriga e Sítio do Lúcio, localizadas na zona rural do município, foram as mais atingidas.
Socorro que não chega e suspeitas de irregularidades
Conforme reportagem exibida pela TV São Francisco na quinta-feira (20), moradores relataram que, mais de um ano após a tragédia, o auxílio financeiro prometido ainda não foi pago, dificultando a recuperação das comunidades.
“Casas foram rachadas e, em alguns casos, completamente destruídas, deixando famílias desabrigadas e sem seus pertences. Móveis e eletrodomésticos também foram danificados pelas chuvas, agravando ainda mais a situação precária dos moradores”, detalhou o relatório divulgado em junho de 2024, quatro meses após o desastre.
A atual gestão da prefeitura, em resposta às cobranças, informou que foram identificados indícios de irregularidades no recebimento e na aplicação dos recursos destinados às famílias afetadas. Este posicionamento alimenta suspeitas anteriores levantadas pela Defesa Civil, que apontou inconsistências no cadastramento das vítimas.
“Há um processo aberto pelo Ministério Público para apurar a responsabilidade da prefeitura, que ao solicitar estado de emergência cadastrou mais de 6.000 famílias, levantando suspeitas de fraude”, indicam os relatórios iniciais sobre o caso.
Promessas renovadas e ações insuficientes
Em julho de 2024, a prefeitura anunciou um Programa de Atenção à Situação de Emergência. Durante reunião com as famílias atingidas na Escola Municipal João Francisco Filho, autoridades prometeram um auxílio eletrodoméstico no valor de R$ 2.000,00 a ser pago em parcela única, além de um auxílio-aluguel de R$ 500,00 por 90 dias para aqueles cujas casas apresentavam risco de desabamento.
“Para você ter uma ideia, nos primeiros momentos nós viemos aqui com o Corpo de Bombeiros, com o Exército, com a Sedes, com a Seinfra, colocamos barcos, colocamos bombas para sugar água de algumas casas. Foram doados cestas básicas, colchões, materiais de limpeza, água potável, água mineral foi uma resposta rápida que demos naquele primeiro momento de situação caótica”, afirmou o prefeito em exercício, Marcondes Francisco, na ocasião.
No entanto, segundo os moradores, a ajuda recebida até agora se resume a apenas duas cestas básicas (uma da Prefeitura de Paulo Afonso e outra de Santa Brigida) e alguns colchonetes. A prefeitura também anunciou que solicitaria uma sessão extraordinária à Câmara Municipal para abertura de crédito destinado à construção de novas moradias e reforma dos imóveis atingidos, utilizando recursos do Finisa (Financiamento à Infraestrutura e ao Saneamento).
População reclama de prioridades invertidas
Um dos pontos levantados pelos moradores é que, enquanto as famílias afetadas aguardam assistência efetiva, a prefeitura continua realizando eventos festivos no município. “Essa atitude é vista como um descaso e falta de empatia com os moradores que perderam tudo”, indica o relato dos afetados.
Representantes das comunidades cobram uma definição clara do Ministério Público local sobre a situação. Eles questionam por que a ajuda não chegou de forma adequada e por que houve cadastramento de famílias que não estavam na área atingida.
Risco de novas tragédias persiste
Além dos problemas atuais, há preocupação com a possibilidade de novas tragédias. O mapa do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) indica que a região rural afetada se tornou rota de rio, aumentando o risco em caso de novas chuvas intensas.
Essa preocupação é ampliada quando se observa que eventos climáticos extremos têm se tornado mais frequentes no Nordeste. Apenas em janeiro de 2025, 66 municípios baianos foram atingidos por temporais, com cinco decretando situação de emergência e mais de 3.400 pessoas afetadas, entre desabrigados e desalojados.
A prefeitura de Paulo Afonso havia iniciado obras de drenagem em áreas urbanas do município em 2023, melhorando o escoamento de água na região dos lagos entre os Bairros Senhor do Bonfim e Tropical, visando evitar alagamentos durante as chuvas torrenciais. No entanto, as áreas rurais mais vulneráveis parecem não ter recebido a mesma atenção preventiva.
O caso levanta, ainda, paralelos com outras investigações de irregularidades na gestão municipal ao longo dos anos. Documentos do Ministério Público Federal apontam que, em gestões anteriores, já havia denúncias de desvio de recursos federais destinados à saúde e outras áreas essenciais.
Enquanto autoridades e órgãos fiscalizadores tentam esclarecer as possíveis irregularidades, as famílias de Bogó, Barriga e Sítio do Lúcio permanecem em situação de vulnerabilidade, aguardando que as promessas se transformem em ações concretas para a reconstrução de suas vidas.